sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Crítica do espetáculo BENEDITA


Por Mariana Passos e Saulus Castro Bomfim, estudantes do curso de Artes Cênicas da UFBA - Interpretação Teatral (Bacharelado)

O espetáculo “Benedita”, que estreou no Teatro Gamboa Nova a 4 de Novembro de 2011, e conta com a atuação, direção e dramaturgia de Bruno de Sousa, foi a obra a qual decidi dedicar minha atenção e deslumbre. Primeiro por já ter conhecido seu intérprete em um outro trabalho; também pela proposta basilar da peça – trata-se de uma pesquisa do referido intérprete na confecção de uma personagem e sobre os caminhos de estudo do ator; e, por fim, por acreditar e querer conhecer e compreender sobre o processo de construção solístico (por este motivo consta, em anexo, o resultado da entrevista realizada com Bruno).
“Benedita” é a estória de uma personagem homônima que lava roupas de clientes que lhe são conhecidos, dando a entender, pela proximidade com estas personagens citadas, pelo conhecimento que tem de suas vidas, pelas roupas e pelo próprio discurso e contexto da encenação, que se trata de um lugarejo, uma pequena cidade do interior. Em sua companhia há um porco, um leitão, que não aparece em cena de modo concreto. Acompanha-lhe também a sua imensa trouxa na qual traz as roupas sujas e os utensílios a serem utilizados para exercer o seu ofício. Mas, além de lavadeira, Benedita demonstra que ultrapassa o simples conhecimento do asseio das roupas; ela é uma entendedora de ervas, de ‘soluções’, de fé. Em cena, ela expõe suas estórias, não tão suas; ela vai tecendo, ou melhor, estendendo os causos.

A TROUXA, BENEDITA!
Antes de iniciar este escrito, menciono que vou prossegui-lo em primeira pessoa. Justifico este ato pelo fato: Benedita – e creio que muitos assim também a apreendem – me é muito próxima: pelas minhas origens, pelos primeiros anos de minha vida; pela particular presença que ela consolida em minha história.
A trouxa já está lá. Antes do primeiro verbo ela já se faz presente através do objeto cênico e já inicio perguntando-me: será esse seu símbolo maior? Já a sinto presente antes mesmo de conhecê-la, mas será isso que dela irá ficar? Seu ‘carregamento’, suas roupas bem ou mal lavadas? A luz cai e quando reascende já nos revela a velha Benedita em seu caminhar, em seu passo curto e lento, suas direções. O desenho de luz, neste momento, propicia uma curta passagem de tempo que pode ser um dia ou uma etapa de tempo da vida dela. Sua postura e a imensa bagagem às costas demonstram um percurso de trabalho e peso. Deixa a trouxa no chão.
            “Tonho, Tonho”. Suas primeiras palavras; além de um emaranhado de sons e grunhidos que muito se assemelham com os do animal que ela procura: o porco. Lembra-me também um diálogo dos que chamamos tresloucados; uma conversa com o invisível para os de olhos simples; aproxima-se, ao mesmo tempo, de uma eterna reza, de um eterno pedido ou agradecimento aos que a auxiliaram em seus momentos de desprazer e dificuldade e que a guia e a acompanha nos caminhos por onde ela passa; ou é simplesmente os resmungues de uma velha. Quando havia uma horta, nela habitavam patos e gansos; galinhas e cágados. Benedita tem um chamamento para o seu Tonho: “Cuz, cuz, cuz”; acompanhado por um sino. Ela me faz submergir num espaço-tempo só meus; numa distância geotemporal que é ultrapassada pelas forças imagética e sonora propostas por aquela mulher.
            O primeiro contato visual com Benedita lança-me uma pergunta impensada: estou no espetáculo certo? Este é Bruno, mesmo? Passo, então, de forma mais lúcida e lógica a organizar os pensamentos e verificar os porquês deste meu questionamento. Primeiramente, o ator está carregado de uma infinidade de apetrechos e figurino. Este último preenche o corpo dele e lhe dá uma massa corpórea bem diferente da sua própria. Saias de textura rústica, com aparência de muito usadas; tudo nela é muito usado. Algo me chama a atenção sob as roupas: ela tem uma camisa social, masculina. Este sinal é desvendado no momento perto do fim, mas, de início, questiono-me se se trata realmente de uma mulher ou aquela (personagem) ali é um ser universal que está de passagem por nosso mundo. Nem uma nem outra; é uma miscelânea dessas duas possibilidades, acredito eu. A maquiagem colabora para a não identificação do ator. É bastante carregada e cuidadosa para se chegar ao aspecto e à idade de Benedita, e causou em mim um benéfico espanto. A luz também condiciona para uma ambientação lúgubre e um tanto desfocada, não permitindo uma imediata apreensão daquela figura e gerando uma sensação, que se consolidará no decorrer da peça, de extrema solidão e desconforto; de um mundo imenso, mas vazio de outros seres; e, por isto, me virá à mente em diversos momentos: onde está Tonho? Ele não aparece e não aparecerá durante todo o espetáculo, fazendo nascer a dúvida com relação à existência deste animal ou se realmente trata-se de um porco, um animal sob a forma como o conhecemos.
            Após circular à procura de Tonho, senta-se sobre a trouxa; na trouxa, mais precisamente. Pergunto-me, pela sua atitude, se ela se considera acima daquelas ‘vidas’ que carrega em sua trouxa; ou se aquela trouxa é que a mantém e a faz surgir tal como é. É neste momento que se inicia o ciclo de memórias. Na primeira estória fica evidente sua importância para o lugar de onde ela vem. Através de suas ervas tenta reter o avanço de um furúnculo no corpo de uma jovem que está grávida. Há uma simbiose neste relato que me deixou a impressão de que, talvez, o carnicão ao qual ela se refere não seria o próprio filho daquela menina. Algo dá errado nesta receita e um homem passa a chantageá-la, pedindo favores em troca do seu silêncio. Desses favores realizados é que transparece seu dom para com os trabalhos espirituais. Ela realiza feitiços que auxiliam o tal homem a conseguir as mulheres que ele quer. Começa a se desenhar a faceta desta personagem. Ela não uma velhinha de alma boa e benfeitora; ela é uma mulher com desejos e interesses próprios; com sofrimentos e amarguras condensados em seu ser. Não há nada de heróico ou ideal; há uma mulher que atende a pedidos; e atende aos seus. Está aí, a meu ver, a beleza deste espetáculo; no grotesco, e mesmo numa ingenuidade que dela transborda; numa condição de troca com o mundo. Há uma fé que a faz pôr uma santa em posição de vigília e que, em outro instante, a lança - a santa – num balde onde se misturam outros desafetos.
            Cada peça de roupa traz consigo uma lembrança que ela revive com intensidade. Um macacão de criança que se traduz numa vida conturbada de um jovem envolvido com drogas e que, após uma traição por parte de sua mulher, vinga-se dela, matando-a. A evangélica que é tão cuidadosa com ela e da qual ela tanto gosta, mas que não paga pelo serviço prestado. Uma outra mulher que sempre paga adiantado, mas que Benedita não ‘vai muito com a cara’; esta mulher deixa dinheiro em uma das roupas e Benedita acredita que foi um teste de sua confiabilidade, e condena-a a levar um tempo a mais de molho dentro do balde. A última estória está diretamente ligada a ela própria. Trata-se de uma mulher que roubou seu marido. A história de Benedita, a encruzilhada à qual ela chega e se encontra, está justamente ligada a este fato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
            O primoroso, cuidadoso e, mencionando sua própria voz, sincero trabalho do jovem Bruno de Sousa já é um atrativo admirável. Ele possui uma vivacidade contrastante com o tempo de vida da velha Benedita, mas que adocica o tempero desta mulher. A ritmia, o gesto calculado em contraponto aos espasmos da velhice – que anunciam alguma comunicação com o invisível. -, as dificuldades próprias desta idade, a voz que não se perde nem deixa nada sem entendimento e cria um equilíbrio com a gestualidade e a debilidade física, além de acrescentar uma sabedoria aprendida por poucas pessoas, bem como um tom futriqueiro, os níveis de agonia, de desespero, de dor, de inveja, de intriga, de amabilidade que são muito bem desenhados e construídos ao longo da encenação, compõem esta personagem extremamente atraente. Mas causa-nos a impressão de que somente ela tem uma potência cênica. Sentimos uma necessidade de uma riqueza maior na dramaturgia; a passagem de Benedita acaba ficando em segundo plano; suas estórias não se encaminham para ela, mas para um outro tecido, para o externo. Quando ela trata do momento de seu marido e da moça rica algo se vislumbra para que possamos, verdadeiramente, conhecê-la, saber o que a tornou aquela mulher. Mas a estória se esvai em prol de seu desejo vigoroso de vingança. Ela se cerca de um mistério que não transparece ou não é exposto tão significativamente em cena. Daí a possibilidade de ficarmos tão entretidos com o fascinante trabalho do ator e não nos atermos ao que Benedita nos relata. A solução encontrada para montar o seu cenário, o espaço daquela mulher também vale ser ressaltado. Tudo salta aos nossos olhos daquela trouxa trazida sobre os ombros e arma-se às nossas vistas. A trilha sonora não é tão próxima da velha quanto o cenário ou a maquiagem; ela apenas cria ambientes e atmosferas exteriores. A luz, sim, caminha ao pé de Benedita, chamando-nos muitas vezes para uma melhor compreensão do estado de ânimo, das imagens mentais e das cores de seu coração. 


Trabalho apresentado para avaliação na disciplina Pesquisa em Artes Cênicas, do Curso de Artes Cênicas, Escola de Teatro, sob a orientação da Professora Lílith Marques.

           

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